- E aí, Carlos, como está?
- Em dúvida, Tomé.
- Em dúvida? De quê?
- Sabe, eu preciso encaminhar os três alunos restantes para as áreas diversas que a escola oferece, mas não sei como fazer isso! Eles são bons em tudo!
- Que santo problema, hein!? E o que pretende fazer?
- Não sei. Estava querendo falar com o Prof. Philinto. Ele é tão experiente, tantas décadas de estudo, quem sabe poderia me ajudar?
Lá foram os dois professores no gabinete do veterano Prof. Philinto. Até no nome ele era antigo. Homem renomado que já ajudara inúmeros alunos em suas carreiras profissionais. E ali estava, num escritório literário, após a aposentadoria, como consultor. Aposentado há 30 anos, não queria deixar a escola.
- Prof. Philinto, podemos conversar?
- Claro, claro! Entrem. Em que posso ser útil?
Os mestres explicaram o problema. Philinto pegou uma caneta, fez alguns círculos, bateu com o dedo na mesa por algumas vezes e disse:
- Os alunos estão na classe?
- Sim, os três.
Philinto foi até o seu carro e pegou um par de sapatinhos que sua neta Maria havia deixado lá. Tomou-o, levou-o à sala e se sentou na cadeira do mestre. Os alunos estavam curiosos.
- Caros estudantes, o mestre de vocês consultou-me sobre o que fazer no encaminhamento para a graduação. Exatas, humanas ou biológicas? Vocês não sabem o que optar?
- Não sabemos! Foi a resposta unânime.
- Querem a minha ajuda?
- Claro! Queremos sim!
- Então, peguem uma folha de sulfite e uma caneta agora. E tirem todo o resto de suas mesas.
Eles fizeram o que o mestre ordenara. O professor, olhando de forma profunda para os olhos dos três, deixou-os até sem graça. De repente, tirou do seu paletó o par de sapatinhos vermelhos e brancos, colocou-os sobre a mesa e disse:
- VOCÊS TÊM CINCO MINUTOS PARA FAZER UMA REDAÇÃO ACERCA DISTO QUE EU COLOQUEI SOBRE A MESA. COMECEM!
Eles então passaram a pensar, a morder a tampinha da caneta, a se balançar na cadeira, a olhar para o teto, a buscar alguma coisa que dizer sobre os sapatinhos. O relógio no corredor sinalizava o tempo: tic-tac-tic-tac. Já não havia viva alma na escola, exceto os mestres e os 3 alunos. E o tempo passava. Tic-tac, tic-tac.
- TERMINOU. ENTREGUEM-ME AGORA!
Sob protestos, pedindo um tempo maior, eles entregaram as folhas.
Foram 3 redações. José fez a primeira. Ali estava escrito:
- Esses sapatinhos de criança são bem confortáveis. A borracha deles é difícil de gastar. A tinta que os recobre é muito resistente. Por não terem panos em sua constituição eles não apodrecem. O material é reciclável e pode ser útil para outras coisas, quando não servirem mais como calçados. Podem virar tiras de borracha, podem escorar uma mesa torta, podem ser colados e virarem apoio para panelas...
Júlio fez a segunda redação. Ali se lia o seguinte:
- Sapatinhos extremamente bonitos e confortáveis. Um par desses pisantes pode ser comprado por até 30 reais. Os pais podem ter bom desconto se comprarem 3 pares com números maiores, já imaginando os pés que crescerão. Se deixarem para comprar só quando for preciso não poderão pleitear o desconto. Aliás, é um excelente produto para revenda. Se alguém for até a fábrica e comprar uma dúzia de caixas terá prazo e descontos e poderá vender de porta em porta, colocando até 100% de lucro...
Elias escreveu a terceira. Ali estava escrito assim:
- Esses sapatinhos são o testemunho de uma criança amada e feliz. Quantas vezes eles calçaram os pezinhos desta criança feliz. Quantos passeios com a família não devem ter sido feitos, tendo os sapatinhos por testemunha! Também horas de dor eles testemunharam, quando a acompanharam no posto de saúde ou no dentista. Eles devem ter calçado os seus pezinhos na festinha da escola, no aniversário e nas férias de praia. Quando chega a noite eles se separam da querida menininha, que aprenderam a amar depois de tantas pisadas. E aguardam ansiosos o nascer do sol para o reencontro feliz...
Os professores estavam perplexos com o resultado. O Mestre Philinto, bastante satisfeito, notificou a todos:
- Sr. José, fique de pé!
José, bastante ansioso, ficou. E então ouviu:
- O senhor é um exímio industrial, um químico qualificado, um excelente gerente de produção. Sua perspicácia operacional e sua avaliação dos produtos, utilidades e destinos é fabulosa! Será muito promissor na área de química, produção industrial e inventos. Meus parabéns!
José nem se aguentava de tantos títulos que agora carregava na imaginação. Já pensava em abrir as INDÚSTRIAS JOSÉ LTDA!
- Sr. Júlio: fique de pé!
Júlio obedeceu, levantando-se.
- O senhor dará excelente contador, excelente vendedor, excelente empreendedor e excelente administrador. Sua área é exatas, com qualificação também em humanas. Meus parabéns!
Júlio se sentiu como um profissional próspero diante de tantas palavras boas.
- Agora peço ao Sr. Elias para que fique de pé.
Elias, vermelho como um pimentão, colocou-se de pé. Aflito, pensava que sua redação fora um fiasco diante das demais. Já imaginava o vexame, a falta de criatividade e o que se seguiria daí para frente. Mas, o professor não lhe deixou pensar muito. Começou a falar.
- Senhor Elias, o senhor é um homem especial. A sua vocação é literária. O senhor tem a alma de um poeta, a mente de um dramaturgo, a caneta de um fino orador. O senhor é capaz de enxergar o que os outros não enxergam e de sentir o que os outros não saberiam descrever em palavras. O senhor será encaminhado para a área de humanas. Será um excelente mestre, um excelente redator, escritor, autor de textos e de filmes, um jornalista de análise apurada, um político altamente qualificado, cujos auditórios lhe aplaudirão de pé. Meus parabéns, caro futuro mestre!
Elias chorou. E não poderia ser diferente, pois o professor leu a sua alma.
Então, o Mestre Philinto disse aos seus colegas:
- Caros colegas, co-partícipes de nossa missão educativa: aí está o destino destas almas preciosas. Se eles assim se encontram devem muito a vocês, cuja experiência e ensino lhes serviu de base. Parabéns pelo trabalho glorioso!
Os professores, com os olhos lacrimejantes, agradeceram e disseram ao veterano professor:
- São pessoas como o senhor, Professor Philinto, que nos fazem acreditar no magistério ideal. Foi a sua vida que nos inspirou há anos atrás para que nos tornássemos professores também. Obrigado por seu legado!
Escrevi este texto para homenagear a cada professor que me lê, a cada pastor, mestre, ensinador, contador de estórias e educador, cuja vida inspira e constrói. Meus parabéns!
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