Uma discussão sobre o sofrimento, dentro do livro de Jó. Poderíamos também chamar de discursos e diálogos sobre o sofrimento, porque o que se acha no texto bíblico não é exatamente um debate a respeito de um tema, em que um locutor pretende superar o argumento do outro, numa demonstração de maior capacidade intelectual. Jó e seus três amigos, Elifaz, Bildade e Zofar, abordam o tema do sofrimento a partir da situação desoladora que se abateu sobre a vida de Jó.
A propósito, muitas críticas têm sido feitas aos amigos de Jó, até mesmo de forma pejorativa. Quem de nós ainda não ouviu a seguinte expressão: “Quem tem amigos como os de Jó não precisa de inimigos”? Uma ressalva, no entanto, deve ser feita. Inicialmente, eles procederam como verdadeiros amigos, tomados por genuíno sentimento solidário.
Esses três amigos moravam em lugares diferentes. Ao ouvirem falar sobre o que acontecera a Jó vieram, cada um do seu lugar, e combinaram ir visitá-lo juntos, a fim de “condoer-se dele e consolá-lo” (2:11). A finalidade da visita era boa e louvável. Ao vê-lo, não o reconheceram tão desfigurado ele se encontrava em consequência da doença. Os amigos choraram (2:12). Sentaram-se com ele e, durante sete dias e sete noites permaneceram em silêncio, sem pronunciar palavra alguma, porque “viam que a dor era muito grande” (2:13). Um exemplo que devemos seguir: na ausência de palavras adequadas e confortantes, é melhor que se fique em silêncio. Basta a presença atenciosa para que a solidariedade seja transmitida. Até aqui os três amigos de Jó estavam procedendo bem, com intenções sinceras.
Depois disto, Jó passou a falar. Foi o próprio Jó quem quebrou o silêncio que perdurou por sete dias. Teve início o primeiro discurso. O pronunciamento de Jó foi uma explosão de um homem mergulhado nas profundezas do sofrimento. Começou amaldiçoando o dia do seu nascimento: “Pereça o dia em que nasci e a noite que disse: Foi concebido um homem!” (3:2). Desejou que esse dia não fizesse parte do calendário do ano (3:6). Contudo, é necessário notar, que Jó não amaldiçoou a Deus, nem mesmo a si próprio. Ele amaldiçoou tão somente o dia do seu nascimento.
Diante da situação tão lastimável em que se encontrava, considerou que bom seria terminar logo a vida (3:11-19), melhor ainda nunca ter existido (3:1-10). No entanto, é bom que seja dito, a ideia de suicídio nunca se fez presente em seu discurso. Jó reconhecia que o poder sobre a vida e a morte pertence exclusivamente a Deus. Assim, desejou que Deus fizesse isso (6:8-9), mas ele próprio jamais cogitou em fazê-lo.
Rompido o silêncio, fez-se o momento dos três amigos passarem a falar. Um por vez, intercalados por Jó, em três ciclos de discursos. Primeiro Elifaz, depois Bildade e, por fim, Zofar. Por fim, não, porque mais adiante, no capítulo 32, entrou em cena um quarto amigo, chamado Eliú. Ele era o mais moço dos quatro e, por essa razão, esperou e foi o último a falar a Jó (32:4), respeitando o fato de que os outros três tinham mais idade do que ele. Naquele tempo a idade era honrada com prioridade. Prevalecendo esse critério, acredita-se que Elifaz fosse o mais idoso, seguido de Bildade e depois Zofar.
Elifaz desenvolveu o seu discurso tendo por base a experiência. Ele dizia: “Segundo tenho visto” (4:8), “Bem vi eu” (5:3). Foi o mais compreensivo dos três, mas ainda assim sua fala se deu em tom de desaprovação e acusação a Jó. Pediu permissão para falar e usou de cortesia, seguindo o estilo do ambiente acadêmico oriental da época. Inicialmente, foi cuidadoso; elogiou o comportamento passado de Jó, especialmente a sua capacidade de aconselhar e ajudar a pessoas frágeis e vacilantes (4:3). A seguir deu início à censura, insinuando que Jó não era capaz de aplicar a si mesmo o que ensinava a outros (4:5). Progrediu em direção à sua teoria de que o sofrimento é retribuição ao pecado, pela qual o homem colhe o que semeia (4:8). Assim, Jó estaria sofrendo porque era culpado de algum pecado. Nesta linha de pensamento, Elifaz aconselhou a Jó “a não desprezar a disciplina do Todo-Poderoso” (5:17).
Bildade usou a tradição como respaldo à sua fala, voltando-se para as “gerações passadas” (8:8). Foi mais severo que Elifaz. Iniciou o seu discurso já fazendo acusações a Jó, ao referir-se a ele como um falador cujas palavras são como “vento impetuoso” (8:2). Tomando por base a absoluta justiça de Deus (8:3), considerava que quem pratica o bem ceifará o bem e do mal ceifará o mal. Assim sendo, em total falta de tato, disse a Jó que se os filhos dele morreram foi por castigo de Deus aos pecados que cometeram (8:4). Sua tese era a de que o sofrimento é sempre uma sanção da parte de Deus (8:13).
Zofar apoiou o seu discurso em suposições. Dos três, ele foi o mais rude e hostil. Impiedoso no falar. Começou o seu pronunciamento chamando Jó de tagarela e os seus discursos de palavrório (11:2). Sem que houvesse qualquer registro a respeito, acusou Jó de ter dito algo sobre si mesmo, alegando-se limpo e sua doutrina pura (11:4), quando Jó nunca disse isso. É verdade que ele defendeu insistentemente a sua inocência quanto à tragédia que lhe sobreveio, mas nunca atribuiu a si próprio essas qualificações. Aparentemente arrogante Zofar supunha saber o que Deus diria se falasse a Jó, julgando–se com o privilégio de ter recebido a verdadeira Sabedoria que só pode vir de Deus, uma vez que a aplicou ao caso de Jó (11:5-12). Seu tom acusatório se confirmou ao exortar Jó a lançar para longe a iniquidade de sua mão (11:14) porque se assim fizesse ficaria livre do sofrimento (11:15-16). Ele pressupôs que o problema de Jó estava vinculado ao pecado. À semelhança dos outros dois, Zofar também defendeu a teoria de que o sofrimento é retribuição ao comportamento individual falho.
Intercaladas a esses discursos encontram-se as respostas de Jó a cada um dos seus amigos, respectivamente. Admitiu que suas palavras foram precipitadas (6:3), porém insistiu que sua queixa se justificava mediante as enormes proporções de sua calamidade e conseguinte angústia. Embora se queixando, Jó guardava-se fiel e amando a Deus pela Pessoa que Deus é, de modo a poder dizer “não tenho negado as palavras do Santo” (6:10), mesmo suportando um sofrimento que já lhe parecia insuportável (6:11). Estava de acordo com os seus amigos em muitos dos conceitos teológicos apresentados por eles, sobretudo em relação à sabedoria e à soberania de Deus. Estas verdades jamais foram questionadas por Jó. Entretanto, quanto às acusações que lhe fizeram, ele rejeitou-as firmemente. Considerava que seu sofrimento era sem motivo (9:17). Embora temendo, face à grandeza de Deus (9:32), seu desejo ardente era poder encontrar-se pessoalmente com Deus (13:3) e defender-se perante Ele. A certeza de sua inocência, no tocante às causas de seu sofrimento, o encorajava a esse encontro (13:15). Apesar das aparências contrárias, o seu relacionamento com Deus não havia sido rompido.
Os diálogos entre Jó e os seus amigos são longos e ricos em ensinamentos. Alguns detalhes dos argumentos por eles apresentados serão observados no próximo estudo. Contudo, algumas considerações merecem a nossa atenção neste momento.
Ainda que bem intencionados, os amigos de Jó mostraram-se legalistas e insensíveis acusadores. Estavam certos em muitas das coisas que disseram. Apesar disso, eles erraram.
Um dos principais erros foi o de generalizar a doutrina de que o homem colhe o que semeia. De fato, a Bíblia nos adverte, em Gálatas 6:7, que “de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará”. No entanto, não era esse o caso de Jó; essa regra não se aplicava à situação dele, como não se aplica a todas as pessoas, indiscriminadamente. É preciso avaliar a situação individual.
O sofrimento humano é mais do que um instrumento de recompensa e castigo. O pecado sempre traz consequências amargas, mas nem todo sofrimento é resultado do pecado. Certa vez, os discípulos perguntaram a Jesus quem havia pecado para que um determinado homem tivesse nascido cego. Teria sido ele ou os seus pais? A resposta de Jesus foi clara: “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus” (João 9:2-3).
Nem sempre o sofrimento é punitivo. Ele pode ser instrutivo porque “Deus repreende a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem” (Provérbios 3:11-12); pode ainda ser terapêutico, a fim de que o “manco não se extravie, antes seja curado” (Hebreus 12:11-13); pode ser circunstancial, decorrente das adversidades do mundo caído.
Contudo, qualquer que seja a sua forma e finalidade, há uma nota de esperança e ânimo, cujo termo de garantia se encontra no Salmo 34:19: “Muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra de todas”.
Deus seja louvado!
Consulta Bibliográfica
HEAVENOR, E. S. P. in O Novo Comentário da Bíblia. Vol.II São Paulo: Vida Nova, 1963.
TERRIEN, Samuel. Jó – Grande Comentário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1994.